Esta
postagem é um breve resumo da entrevista feita a duas antropólogas no dia 4 de
setembro na sede do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São
Paulo – Carmen Junqueira e Betty Mindlin – a respeito de suas experiências no trabalho
com as índias. Ao final deste texto você encontrará referências bibliográficas.
Vale lembrar que as reflexões das referidas antropólogas
sobre o tema resultam apenas de sua vivência com algumas comunidades indígenas,
entre os Kamaiurá, os Cinta Larga, os Suruí, e outros. Assim sendo, essas
reflexões não devem ser consideradas como conclusões de uma pesquisa com um
número expressivo de comunidades, que vivem em centenas de aldeias, cada uma
mantendo suas tradições.
As experiências e observações relatadas pelas referidas
antropólogas giraram entre as décadas de 60 e 70 aproximadamente. Elas iam e
voltavam das aldeias por determinados períodos de tempos e por vários motivos,
sendo que um deles foi a época da ditadura e os militares não as deixava voltar.
No entanto, Carmen afirmou que esteve em julho de 2003 visitando a aldeia.
Obs.: todos as informações entre parênteses explicam
algumas palavras que talvez não sejam muito familiares para alguns leitores e foram
feitas no intuito de compreender o texto ao máximo. Tudo que estiver entre
aspas são afirmações sem alterações no texto e as reticências significam que
alguns textos foram retirados para não estender ainda mais a postagem.
Carmen – “Não é muito fácil falarmos sobre a mulher indígena porque
os povos com os quais trabalhamos” ... “as mulheres eram muito recatadas. Os
poucos que falavam português eram homens.” Assim, “O primeiro contato
mais forte que tive com as mulheres foi entre os Kamaiurá, do Xingu”. E,
nesta aldeia, “...O homem tem mais prestígio, mas com o tempo é possível
perceber que a mulher não faz questão desse prestígio, ela não impõe essa
necessidade à sociedade.”
“As mulheres desta aldeia têm um conhecimento
enorme sobre o corpo da mulher: a formação e o funcionamento do corpo, a
menstruação, a concepção, o parto, o aborto, o anticoncepcional. São donas do
próprio corpo.”
“Para a mulher, que concebe, é mais complexo, a ela cabe a
decisão de ter ou não ter o filho, abortar, tomar anticoncepcional ou praticar
o infanticídio, porque isso é praticado pelas mulheres... São decisões graves
que ela toma... Em pouco tempo vi que todas as mulheres da tribo tinham o
domínio da vida... São as reprodutoras da vida, mas as donas também, porque os
homens não interferem na esfera do aborto, do anticoncepcional. A decisão é
delas.”
Betty – “... Eu tinha a impressão, desde o começo da minha
pesquisa de campo, de uma intimidade muito grande com as mulheres... são muito
extrovertidas, falam muito.” Disse a entrevistada a respeito dos Suruí, de
Rondônia.
“As mulheres não usavam roupa alguma nessa época. Elas
imediatamente nos cercavam com uma afetividade enorme. É uma característica
desse povo o domínio feminino nítido, aparente, por exemplo, nos rituais de
reclusão, que, então, em 1978, eram óbvios. (Hoje em dia não são tão óbvios.)”
“Entre o povo Suruí, as mulheres ficam em reclusão depois
de cada parto, na menarca (apenas para quem não conhece o termo, menarca significa:
primeira menstruação) ... Isoladas... ficam quatro ou cinco juntas quando
menstruadas. Conversam muito. As situações de reclusão são maravilhosas para
desvendar o que pensam. Ao entrar na maloquinha,
(uma espécie de cabana pequena) imediatamente fica-se somente com as mulheres,
elas sem roupa, com criança no peito... As mulheres falavam de determinados
assuntos com uma espontaneidade que os homens não têm.”
Segundo Betty, as mulheres desta aldeia Suruí,
deram “acesso ao universo do parto, da menstruação, do sofrimento, das mulheres
que apanham, que vêm nos confidenciar, desfiar nomes dos amantes. Sabemos quem
são eles pelos colares exibidos nos pescoços dos homens, presentes delas.”
Betty ainda observa que “... embora as esferas de
homem e mulher sejam claras, não há rituais propriamente proibidos às mulheres.
Nos Suruí não se tem a sensação de segredo para as mulheres, como entre os
Kamaiurá...”
Na entrevista, a antropóloga Carmen citou
um relato que ouviu na tribo dos Kamaiurá. Ela
falou que as mulheres da aldeia descobriram que um dos índios falou com elas
que tinha o desejo de ser mulher e elas avisaram
para todo mundo que ele queria ser mulher. “Ele passou então a usar
indumentária feminina, o uluri,
semelhante a um biquíni muito pequeno, e deixou o cabelo crescer.... “Os homens
o namoravam, como se namora uma mulher, ou pelo menos quase como se namora uma.
Ia tudo muito bem, até que um dia ele ficou ‘grávido’. Os índios temeram que
outras tribos falassem que na aldeia deles, homens tinham filhos.
Envenenaram-no e o mataram... pode-se aceitar um homem-mulher, que deseja ser
mulher, mas não um homem ‘grávido’, que tenha um filho de outro homem. Torna-se
uma identidade muito confusa. Quando só o comportamento se altera, é possível.”’
Sobre a nudez e a
sexualidade...
Em sua entrevista, a antropóloga Betty
afirmou “... Nós vemos a nudez como vergonha. Para eles a roupa tinha outro
sentido – estavam usando de enfeite. O que se sabe sobre sexualidade indígena é
praticamente nada...”
Já a antropóloga Carmen disse que, sobre a
sexualidade o que se sabe “É pouco, muito pouco...” mas ela relatou que
entre os Kamaiurá o início da relação sexual "começa-se encostando o pé,
esse é o primeiro toque, o pé descalço... É curioso, como é cultural localizar
a zona erótica. Era o pé!”
Estudos Avançados perguntou se a vida amorosa dos
índios era mais simples e menos complicada do que a dos ‘civilizados’?
Betty – “Ao contrário, acho que não é, cada povo é
diferente do outro, e mesmo os povos com quem nós duas convivemos apresentam
traços muito distintos. ... Vê-se entre os Suruí casais que são muito fiéis,
que se amam a vida inteira, mas há outros que mudam muito de parceiros, com o
apoio da família. A independência feminina é relativa. Os homens é que trocam
as mulheres entre si, para fazer alianças. Vi situações violentas, quase de
guerra entre aldeias, em que as mulheres eram as ‘Helenas de Tróia’. Eram
obrigadas a se casar com um homem determinado em virtude de acordos feitos
entre os pais, que, em geral, eram cunhados, ou era o tio materno, dando uma
esposa para o sobrinho. Mas ela podia fugir e de vez em quando fugia, com
aprovação tácita da própria família. Mudava de marido e de lugar. Essas situações
eram variáveis. O que nos leva a indagar qual é a liberdade amorosa e sexual
que as mulheres têm, dentro de que limites?”
O
respeito às mulheres...
Betty afirmou “Eles consideram que o amante (se referindo ao namorado)
que avançar sem consentimento, ou com precipitação, é um estuprador... para um
rapaz que fizer um gesto indevido, como pôr a mão entre as pernas da moça,
quando ela ainda não deixa, embora esteja deitado a seu lado, as peles se
tocando. O namoro começa como um namoro urbano, com um olhar, um sinal de
interesse, mas eles ficam juntos de modo contido, antes do casamento, até que
ela resolva. Eles acham que se não se cria uma intimidade entre o par não pode haver sexo.”
Sobre o estupro, as antropólogas relataram...
Carmen – “Lá entre os Kamaiurá, definitivamente não existe.” Ela
acrescentou ainda, “Fui vendo, de fato, que eles não podem ter relação sexual a
não ser com amplo e explícito consentimento da mulher.”
Betty – “Nunca vi isso acontecer entre os povos que conheço” (se
referindo aos índios das aldeias em que esteve presente por algum tempo).
Estudos avançados perguntou: O que é vedado às índias?
Betty – “Nas
questões de sexualidade há uma enorme dificuldade em saber o que se passa entre
os índios. Praticamente só acreditamos no que vemos e ouvimos, porque há um
monte de dúvidas sobre todos os assuntos possíveis. As relações sexuais começam
muito cedo, antes mesmo da menarca. É um fato nos povos que conhecemos. Parece
não haver violência em relação às meninas e elas são educadas para o
relacionamento sexual por esses parentes mais velhos, sendo criadas por eles
com carinho, porque são pessoas dentro da categoria prescrita de parentesco.”
“Outro assunto que me intriga demais... tem a ver com
violência, é a casa dos homens. Há povos que têm a casa dos homens, mas cada
uma é diferente da dos outros... Mas as diferenças entre as casas dos homens
são muito grandes se pensarmos nos Xavante, nos Kaiapó, nos Kamaiurá, nos Munduruku,
nos Karajá, nos Javaé... Em alguns povos, as mulheres vão à casa dos homens em
certas ocasiões, para relações sexuais com múltiplos parceiros. Noutras, jamais
entram, o espaço público é masculino. Em alguns povos, só os homens podem
sonhar, as mulheres não... Nos Javaé, só a pude ver de longe. Realmente é
impensável uma mulher Javaé chegar perto, até mesmo cruzar as fronteiras
proibidas. Atravessar os caminhos masculinos é uma transgressão.”
Carmen – “No caso
que conheço, o Kamaiurá, basicamente, há flautas jacuí e a casa dos homens. Se uma mulher
olhar a flauta jacuí ela é estuprada por toda a aldeia.
Esse é o castigo. Nunca soube de alguma que tenha sido punida, mas conta-se que
uma mulher, de tal povo, que passou inadvertidamente, talvez tenha sofrido as
consequências. Então existe o estupro como a maior punição que pode ocorrer a
uma mulher, quando transgride a regra de não poder ver as flautas.”
Betty – “O jacuí é uma referência e um mito fundamental
que existe entre vários povos, como os Munduruku. Originariamente, em tempos
míticos, instrumentos musicais pertenciam às mulheres, depois foram roubados
pelos homens.”
Sobre a violência contra as mulheres...
ESTUDOS AVANÇADOS perguntou: “Há violência não restrita ao problema sexual, violência
por outras razões? Estou querendo estabelecer um contraste com o "mundo
civilizado", em que toda sorte de violência as mulheres sofrem.”
Carmen – “Entre os Kamaiurá, se um homem pega a mulher traindo, no
chamado flagrante, ele bate nela. Mas é uma batida também meio para inglês ver.
O inverso, se a mulher pega o marido transando com uma namorada, ela bate na
mulher. E bate firme, morde, puxa o cabelo, mas não bate no marido. Por aí você
vê a diferença, a mulher apanha dos dois lados, essa que apanhou, por certo
depois também iria apanhar do marido depois.”
Betty – “Alguns povos de Rondônia batem bastante na mulher. A
gente vê muito olho roxo.”
Carmen – “Quando se trata de um homem que é da aldeia não ligam.
Mas quando é homem de fora, que é de outros grupos Cinta Larga, que chega na
aldeia e namora, aí não pode. Também se há um namoro que não é previsto pelas
regras possíveis do circuito matrimonial, a mulher apanha. Nunca vi apanhar,
mas dizem que ela, toda quebrada, vai para a rede.”
Ainda sobre a violência Betty disse “Quanto ao jogo por mulheres, a guerra por mulheres,
isso certamente é anterior ao contato dos índios com as cidades. Porque um
chefe chega a matar um dos seus para pegar a mulher dele. Seria preferível uma
forma menos definitiva de alijar o rival. Mas parece que a tomada à força das
mulheres está inserida na tradição de vários desses povos.”
Na entrevista, as antropólogas também
trocaram perguntas entre sim. Uma destas perguntas diziam respeito a liberdade
da mulher indígena em relação à mulher ‘civilizada’. Eis suas respostas:
Carmen – “... penso que a liberdade da mulher indígena é maior.”
Betty – “Essa liberdade realmente existe, apesar da posição da
mulher não ser a mesma do homem. As mulheres no mundo indígena não são chefes,
são pajés apenas em alguns povos, não têm tanto acesso às drogas alucinógenas,
ao sobrenatural. No entanto, penso que mesmo dentro dessa ciumeira de casamento
elas realizam-se mais. Podem dar ‘escapadas’, jamais são solitárias. Em geral,
os homens é que são poligínicos (em antropologia social se refere a prática de
um homem de contrair matrimônio com várias esposas. No entanto, as mulheres só
pode ter um homem. Em sociobiologia o termo significa o hábito de algumas
espécies pelo qual o macho possui mais do que uma parceira sexual) – há poucos
povos com poliandria (quando uma mulher é casada ao mesmo tempo com vários
homens), com alguns casos no Brasil, raros. Mas elas namoram bastante. Se um
homem namora sete ou oito mulheres é porque a mulher está namorando sete ou
oito homens, a gente vê pelos colares, no pescoço das pessoas.”
Um pouco mais...
TRECHOS selecionados por Betty Mindilin do livro de Carmem
Junqueira Sexo e desigualdade: entre os Kamaiurá e os Cinta Largo (São Paulo,
Olho d'Água, 2002).
Sobre a Mulher,
conta-se:
"Mavutsinim, o criador solitário do mundo, estava
criando a humanidade a partir de troncos do mato, quando "[...] surge um
bando de mulheres, saídas ninguém sabe de onde, interrompendo o processo com
seu olhar profano. Os troncos regridem à forma roliça, engolindo braços e
pernas [...]." (p. 19)
Sobre a Menstruação eles
relatam:
"A explicação que os Kamaiurá costumam dar para a
menstruação remonta a Mavutsinin que, talvez por descuido, deixou minúsculas
piranhas na barriga das mulheres que criou. A todo mês elas mordiscam suas
entranhas, provocando perda de sangue. Mas custa crer que o imenso perigo que a
menstruação oferece tenha sido derivado de uma origem tão casual. É mais
razoável supor que Mavutsinin as amaldiçoou, fazendo com que periodicamente
lembrem à sociedade que foram elas as causadoras do fracasso da primeira
tentativa de criação do homem. Imagino que Mavutsinin, ao ser surpreendido
gerando vida, dom feminino que ele usurpou, acabou punido pelo próprio olhar
profano das mulheres e obrigado a recomeçar o encantamento dos troncos. Sua
vingança foi marcá-las com um estigma eterno, fazendo com que o sangue por elas
vertido evoque o mistério da morte, a negação da vida, a destruição." (p.
27)
Este resumo teve como objetivo principal homenagear, de
forma ímpar, os índios de nossa nação. Entretanto, verifica-se a importância de
se conhecer um pouco da sexualidade de outros povos que, muitas vezes, passa
alheio ao nosso conhecimento.
Nosso intuito não é o construir juízo de valor sobre quem
quer que seja. Nosso intuito passa pelo crivo do conhecer e se aprofundar nas
muitas facetas da sexualidade de um país amplo de culturas e plural em caminhos.
Referências
Bibliográficas