domingo, 17 de abril de 2016

Índios do Brasil: Refletindo sua Sexualidade!

Esta postagem é um breve resumo da entrevista feita a duas antropólogas no dia 4 de setembro na sede do Instituto de Estudos Avançados (IEA) da Universidade de São Paulo – Carmen Junqueira e Betty Mindlin – a respeito de suas experiências no trabalho com as índias. Ao final deste texto você encontrará referências bibliográficas.

Vale lembrar que as reflexões das referidas antropólogas sobre o tema resultam apenas de sua vivência com algumas comunidades indígenas, entre os Kamaiurá, os Cinta Larga, os Suruí, e outros. Assim sendo, essas reflexões não devem ser consideradas como conclusões de uma pesquisa com um número expressivo de comunidades, que vivem em centenas de aldeias, cada uma mantendo suas tradições.

As experiências e observações relatadas pelas referidas antropólogas giraram entre as décadas de 60 e 70 aproximadamente. Elas iam e voltavam das aldeias por determinados períodos de tempos e por vários motivos, sendo que um deles foi a época da ditadura e os militares não as deixava voltar. No entanto, Carmen afirmou que esteve em julho de 2003 visitando a aldeia.

Obs.: todos as informações entre parênteses explicam algumas palavras que talvez não sejam muito familiares para alguns leitores e foram feitas no intuito de compreender o texto ao máximo. Tudo que estiver entre aspas são afirmações sem alterações no texto e as reticências significam que alguns textos foram retirados para não estender ainda mais a postagem.



 Carmen – “Não é muito fácil falarmos sobre a mulher indígena porque os povos com os quais trabalhamos” ... “as mulheres eram muito recatadas. Os poucos que falavam português eram homens.” Assim, “O primeiro contato mais forte que tive com as mulheres foi entre os Kamaiurá, do Xingu”. E, nesta aldeia, “...O homem tem mais prestígio, mas com o tempo é possível perceber que a mulher não faz questão desse prestígio, ela não impõe essa necessidade à sociedade.”

“As mulheres desta aldeia têm um conhecimento enorme sobre o corpo da mulher: a formação e o funcionamento do corpo, a menstruação, a concepção, o parto, o aborto, o anticoncepcional. São donas do próprio corpo.

“Para a mulher, que concebe, é mais complexo, a ela cabe a decisão de ter ou não ter o filho, abortar, tomar anticoncepcional ou praticar o infanticídio, porque isso é praticado pelas mulheres... São decisões graves que ela toma... Em pouco tempo vi que todas as mulheres da tribo tinham o domínio da vida... São as reprodutoras da vida, mas as donas também, porque os homens não interferem na esfera do aborto, do anticoncepcional. A decisão é delas.”

Betty – “... Eu tinha a impressão, desde o começo da minha pesquisa de campo, de uma intimidade muito grande com as mulheres... são muito extrovertidas, falam muito.” Disse a entrevistada a respeito dos Suruí, de Rondônia.

“As mulheres não usavam roupa alguma nessa época. Elas imediatamente nos cercavam com uma afetividade enorme. É uma característica desse povo o domínio feminino nítido, aparente, por exemplo, nos rituais de reclusão, que, então, em 1978, eram óbvios. (Hoje em dia não são tão óbvios.)”

“Entre o povo Suruí, as mulheres ficam em reclusão depois de cada parto, na menarca (apenas para quem não conhece o termo, menarca significa: primeira menstruação) ... Isoladas... ficam quatro ou cinco juntas quando menstruadas. Conversam muito. As situações de reclusão são maravilhosas para desvendar o que pensam. Ao entrar na maloquinha, (uma espécie de cabana pequena) imediatamente fica-se somente com as mulheres, elas sem roupa, com criança no peito... As mulheres falavam de determinados assuntos com uma espontaneidade que os homens não têm.”

Segundo Betty, as mulheres desta aldeia Suruí, deram “acesso ao universo do parto, da menstruação, do sofrimento, das mulheres que apanham, que vêm nos confidenciar, desfiar nomes dos amantes. Sabemos quem são eles pelos colares exibidos nos pescoços dos homens, presentes delas.

Betty ainda observa que “... embora as esferas de homem e mulher sejam claras, não há rituais propriamente proibidos às mulheres. Nos Suruí não se tem a sensação de segredo para as mulheres, como entre os Kamaiurá...”

Na entrevista, a antropóloga Carmen citou um relato que ouviu na tribo dos Kamaiurá. Ela falou que as mulheres da aldeia descobriram que um dos índios falou com elas que tinha o desejo de ser mulher e elas avisaram para todo mundo que ele queria ser mulher. “Ele passou então a usar indumentária feminina, o uluri, semelhante a um biquíni muito pequeno, e deixou o cabelo crescer.... “Os homens o namoravam, como se namora uma mulher, ou pelo menos quase como se namora uma. Ia tudo muito bem, até que um dia ele ficou ‘grávido’. Os índios temeram que outras tribos falassem que na aldeia deles, homens tinham filhos. Envenenaram-no e o mataram... pode-se aceitar um homem-mulher, que deseja ser mulher, mas não um homem ‘grávido’, que tenha um filho de outro homem. Torna-se uma identidade muito confusa. Quando só o comportamento se altera, é possível.”’



Sobre a nudez e a sexualidade...

Em sua entrevista, a antropóloga Betty afirmou “... Nós vemos a nudez como vergonha. Para eles a roupa tinha outro sentido – estavam usando de enfeite. O que se sabe sobre sexualidade indígena é praticamente nada...”

Já a antropóloga Carmen disse que, sobre a sexualidade o que se sabe “É pouco, muito pouco...” mas ela relatou que entre os Kamaiurá o início da relação sexual "começa-se encostando o pé, esse é o primeiro toque, o pé descalço... É curioso, como é cultural localizar a zona erótica. Era o pé!”

Estudos Avançados perguntou se a vida amorosa dos índios era mais simples e menos complicada do que a dos ‘civilizados’?

Betty – “Ao contrário, acho que não é, cada povo é diferente do outro, e mesmo os povos com quem nós duas convivemos apresentam traços muito distintos. ... Vê-se entre os Suruí casais que são muito fiéis, que se amam a vida inteira, mas há outros que mudam muito de parceiros, com o apoio da família. A independência feminina é relativa. Os homens é que trocam as mulheres entre si, para fazer alianças. Vi situações violentas, quase de guerra entre aldeias, em que as mulheres eram as ‘Helenas de Tróia’. Eram obrigadas a se casar com um homem determinado em virtude de acordos feitos entre os pais, que, em geral, eram cunhados, ou era o tio materno, dando uma esposa para o sobrinho. Mas ela podia fugir e de vez em quando fugia, com aprovação tácita da própria família. Mudava de marido e de lugar. Essas situações eram variáveis. O que nos leva a indagar qual é a liberdade amorosa e sexual que as mulheres têm, dentro de que limites?”

O respeito às mulheres...

Betty afirmou “Eles consideram que o amante (se referindo ao namorado) que avançar sem consentimento, ou com precipitação, é um estuprador... para um rapaz que fizer um gesto indevido, como pôr a mão entre as pernas da moça, quando ela ainda não deixa, embora esteja deitado a seu lado, as peles se tocando. O namoro começa como um namoro urbano, com um olhar, um sinal de interesse, mas eles ficam juntos de modo contido, antes do casamento, até que ela resolva. Eles acham que se não se cria uma intimidade entre o par não pode haver sexo.”

Sobre o estupro, as antropólogas relataram...

Carmen – “Lá entre os Kamaiurá, definitivamente não existe.” Ela acrescentou ainda, “Fui vendo, de fato, que eles não podem ter relação sexual a não ser com amplo e explícito consentimento da mulher.”

Betty – “Nunca vi isso acontecer entre os povos que conheço” (se referindo aos índios das aldeias em que esteve presente por algum tempo).

Estudos avançados perguntou: O que é vedado às índias?

Betty – “Nas questões de sexualidade há uma enorme dificuldade em saber o que se passa entre os índios. Praticamente só acreditamos no que vemos e ouvimos, porque há um monte de dúvidas sobre todos os assuntos possíveis. As relações sexuais começam muito cedo, antes mesmo da menarca. É um fato nos povos que conhecemos. Parece não haver violência em relação às meninas e elas são educadas para o relacionamento sexual por esses parentes mais velhos, sendo criadas por eles com carinho, porque são pessoas dentro da categoria prescrita de parentesco.”

“Outro assunto que me intriga demais... tem a ver com violência, é a casa dos homens. Há povos que têm a casa dos homens, mas cada uma é diferente da dos outros... Mas as diferenças entre as casas dos homens são muito grandes se pensarmos nos Xavante, nos Kaiapó, nos Kamaiurá, nos Munduruku, nos Karajá, nos Javaé... Em alguns povos, as mulheres vão à casa dos homens em certas ocasiões, para relações sexuais com múltiplos parceiros. Noutras, jamais entram, o espaço público é masculino. Em alguns povos, só os homens podem sonhar, as mulheres não... Nos Javaé, só a pude ver de longe. Realmente é impensável uma mulher Javaé chegar perto, até mesmo cruzar as fronteiras proibidas. Atravessar os caminhos masculinos é uma transgressão.”

Carmen – “No caso que conheço, o Kamaiurá, basicamente, há flautas jacuí e a casa dos homens. Se uma mulher olhar a flauta jacuí ela é estuprada por toda a aldeia. Esse é o castigo. Nunca soube de alguma que tenha sido punida, mas conta-se que uma mulher, de tal povo, que passou inadvertidamente, talvez tenha sofrido as consequências. Então existe o estupro como a maior punição que pode ocorrer a uma mulher, quando transgride a regra de não poder ver as flautas.”

Betty – “O jacuí é uma referência e um mito fundamental que existe entre vários povos, como os Munduruku. Originariamente, em tempos míticos, instrumentos musicais pertenciam às mulheres, depois foram roubados pelos homens.”



Sobre a violência contra as mulheres...

ESTUDOS AVANÇADOS perguntou: “Há violência não restrita ao problema sexual, violência por outras razões? Estou querendo estabelecer um contraste com o "mundo civilizado", em que toda sorte de violência as mulheres sofrem.”

Carmen – “Entre os Kamaiurá, se um homem pega a mulher traindo, no chamado flagrante, ele bate nela. Mas é uma batida também meio para inglês ver. O inverso, se a mulher pega o marido transando com uma namorada, ela bate na mulher. E bate firme, morde, puxa o cabelo, mas não bate no marido. Por aí você vê a diferença, a mulher apanha dos dois lados, essa que apanhou, por certo depois também iria apanhar do marido depois.”

Betty – “Alguns povos de Rondônia batem bastante na mulher. A gente vê muito olho roxo.”

Carmen – “Quando se trata de um homem que é da aldeia não ligam. Mas quando é homem de fora, que é de outros grupos Cinta Larga, que chega na aldeia e namora, aí não pode. Também se há um namoro que não é previsto pelas regras possíveis do circuito matrimonial, a mulher apanha. Nunca vi apanhar, mas dizem que ela, toda quebrada, vai para a rede.”

Ainda sobre a violência Betty disse “Quanto ao jogo por mulheres, a guerra por mulheres, isso certamente é anterior ao contato dos índios com as cidades. Porque um chefe chega a matar um dos seus para pegar a mulher dele. Seria preferível uma forma menos definitiva de alijar o rival. Mas parece que a tomada à força das mulheres está inserida na tradição de vários desses povos.

Na entrevista, as antropólogas também trocaram perguntas entre sim. Uma destas perguntas diziam respeito a liberdade da mulher indígena em relação à mulher ‘civilizada’. Eis suas respostas:

Carmen – “... penso que a liberdade da mulher indígena é maior.”

Betty – “Essa liberdade realmente existe, apesar da posição da mulher não ser a mesma do homem. As mulheres no mundo indígena não são chefes, são pajés apenas em alguns povos, não têm tanto acesso às drogas alucinógenas, ao sobrenatural. No entanto, penso que mesmo dentro dessa ciumeira de casamento elas realizam-se mais. Podem dar ‘escapadas’, jamais são solitárias. Em geral, os homens é que são poligínicos (em antropologia social se refere a prática de um homem de contrair matrimônio com várias esposas. No entanto, as mulheres só pode ter um homem. Em sociobiologia o termo significa o hábito de algumas espécies pelo qual o macho possui mais do que uma parceira sexual) – há poucos povos com poliandria (quando uma mulher é casada ao mesmo tempo com vários homens), com alguns casos no Brasil, raros. Mas elas namoram bastante. Se um homem namora sete ou oito mulheres é porque a mulher está namorando sete ou oito homens, a gente vê pelos colares, no pescoço das pessoas.”

Um pouco mais...

TRECHOS selecionados por Betty Mindilin do livro de Carmem Junqueira Sexo e desigualdade: entre os Kamaiurá e os Cinta Largo (São Paulo, Olho d'Água, 2002).

Sobre a Mulher, conta-se:
"Mavutsinim, o criador solitário do mundo, estava criando a humanidade a partir de troncos do mato, quando "[...] surge um bando de mulheres, saídas ninguém sabe de onde, interrompendo o processo com seu olhar profano. Os troncos regridem à forma roliça, engolindo braços e pernas [...]." (p. 19)

Sobre a Menstruação eles relatam:
"A explicação que os Kamaiurá costumam dar para a menstruação remonta a Mavutsinin que, talvez por descuido, deixou minúsculas piranhas na barriga das mulheres que criou. A todo mês elas mordiscam suas entranhas, provocando perda de sangue. Mas custa crer que o imenso perigo que a menstruação oferece tenha sido derivado de uma origem tão casual. É mais razoável supor que Mavutsinin as amaldiçoou, fazendo com que periodicamente lembrem à sociedade que foram elas as causadoras do fracasso da primeira tentativa de criação do homem. Imagino que Mavutsinin, ao ser surpreendido gerando vida, dom feminino que ele usurpou, acabou punido pelo próprio olhar profano das mulheres e obrigado a recomeçar o encantamento dos troncos. Sua vingança foi marcá-las com um estigma eterno, fazendo com que o sangue por elas vertido evoque o mistério da morte, a negação da vida, a destruição." (p. 27)

Este resumo teve como objetivo principal homenagear, de forma ímpar, os índios de nossa nação. Entretanto, verifica-se a importância de se conhecer um pouco da sexualidade de outros povos que, muitas vezes, passa alheio ao nosso conhecimento.

Nosso intuito não é o construir juízo de valor sobre quem quer que seja. Nosso intuito passa pelo crivo do conhecer e se aprofundar nas muitas facetas da sexualidade de um país amplo de culturas e plural em caminhos.

Referências Bibliográficas
Diálogo de Carmen Junqueira; Betty Mindlin, Índias e Antropólogas. Disponível em Internet http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-40142003000300014 acesso em 17.04.2016


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